Antes de começar este meu humilde contributo, não queria deixar passar esta oportunidade sem primeiro agradecer o convite para colaborar com este projeto do Portal do Desporto de Matosinhos. É sem dúvida uma iniciativa ímpar no contexto desportivo municipal, e não tenho dúvidas de que, para além do sucesso que já demonstra no concelho, servirá também de modelo para muitos outros projetos que seguirão o seu rasto em contextos idênticos ou até mesmo noutras vertentes da atividade cívica e social. Obrigado André Sales…
Entrando no tema que escolhi para esta minha primeira abordagem, mais do que uma opinião pretendo, acima de tudo, deixar um testemunho sobre a minha transição de atleta para a função de treinador. Independentemente do nível de prestação desportiva e competitiva julgo que, embora sem sustentação em nenhum estudo, uma grande parte dos responsáveis técnicos das equipas das diferentes modalidades e competições desportivas são ex atletas. Uns com formação académica, outros com formação específica de treinador, todos eles têm, objetivamente, algo em comum… O amor pela modalidade que praticaram. Esta será, porventura, a única certeza que teremos relativamente ao perfil de cada um deles. Tudo o resto estará ainda, julgo eu, por evidenciar.
Está dado assim o mote para o tema que escolhi abordar. O percurso de um atleta, seja em que modalidade for, obedece a uma ordem cronológica determinada por etapas bem distintas durante todo o trajeto de relação com essa modalidade. Muitos, provavelmente a maioria, começam muito cedo o seu caminho. Numa primeira fase numa vertente mais lúdica e com reduzidas cargas de treino, culminando depois em fases mais avançadas de prestação desportiva com cargas de treino adequadas ao nível competitivo de cada um. Todos nós somos feitos de experiências acumuladas e construímos a nossa personalidade com base nas relações que estabelecemos com essas experiências. No desporto, talvez pela paixão que na maior parte das vezes lhe está associada e pelos sentimentos que desperta, estas experiências deixam marcas mais fortes do que nas restantes áreas de atividade.
No meu percurso como atleta, como no de tantos outros, o processo de treino aparecia muito associado à perspetiva de construção da performance desportiva centrada no individuo, numa atitude predominantemente egoísta – embora se pretendesse exatamente o contrário – e com uma postura pouco reflexiva sobre toda a dinâmica durante o período de preparação desportiva/competitiva. Conceptualmente, todos nós enquanto atletas de modalidades coletivas, concordamos que o processo é planeado em função do bem comum, mas quando analisamos mais profundamente a atitude individual de cada um, o sentido é predominantemente de uma perspetiva mais individual para depois servirmos então o bem comum. Provavelmente, se colocássemos numa balança o peso da perspetiva individual e da coletiva, teríamos certamente os pratos a pender para a primeira opção.
Objetivamente, a perceção de todo o processo de treino, do ponto de vista do atleta, funciona predominantemente de uma forma intuitiva e não reflexiva como todos nós, agentes do processo, poderíamos desejar. Mesmo as lideranças no seio das equipas, são muitas vezes construídas e aparecem com “interesses” num domínio mais restrito daquele que o universo tão abrangente do processo de treino comporta. Esta minha abordagem está muito condicionada ao meu percurso pessoal e não representa nada mais do que a minha opinião. Contudo, julgo ser interessante esta análise individual como eventual contributo para uma reflexão sobre este tema. Ainda antes de terminar o meu percurso como atleta tive a felicidade de poder ser responsável técnico de equipas de formação. Um aparente pequeno passo, tornou-se num caminho longo e cheio de obstáculos para ultrapassar. A partir desse momento iniciei o processo de construção do meu papel de treinador… E que início! Uma mão cheia de dúvidas era a única coisa que tinha como garantido para conseguir encarar esta nova etapa da minha vida.
Apesar de já ter formação específica, de estar já no percurso académico da área, e de ter sido um atleta de alguma relevância na modalidade, aparentemente, estaria em perfeitas condições para assumir a liderança de uma equipa, seja ela de que escalão fosse… Ninguém está preparado para assumir uma liderança sem passar por um processo de aquisição de competências, que só a prática específica dessa atividade lhe pode proporcionar. Convencido de que a experiência como atleta me iria ajudar na condução do processo, fui arrastado por uma ilusão preconcebida de que desta forma não teria qualquer limitação ao assumir tamanha responsabilidade. Determinação, motivação e vontade de fazer o melhor possível, eram as únicas variáveis que controlava minimamente. Tudo o resto era um emaranhado de tentativas de resolução de problemas associados ao processo de treino, demasiadamente condicionados pela minha visão de atleta. Liderança focada na intuição e menos na reflexão, insuficiente capacitação para efetuar uma análise global sobre o processo e consequente intervenção inadequada sobre o mesmo, são caraterísticas comuns à, suponho eu, maior parte dos treinadores em início de carreira.
O que eu queria deixar como testemunho não era tanto referir dificuldades comuns em fases iniciais de carreiras profissionais. Pretendia sim demonstrar a importância de ter um percurso que, à semelhança daquele que tivemos como atletas, nos permita crescer e atingir patamares de excelência. Fase esta atingível apenas em etapas adiantadas do percurso, seja em que atividade for. Ter sido atleta, só me trouxe reais benefícios já num período bastante avançado da minha experiência como treinador. Despir totalmente a pele de atleta é, ainda hoje, o maior desafio que tenho de enfrentar. A abordagem ao processo de treino tem de estar despida de qualquer preconceito adquirido no percurso como atleta. Considero uma arte ter a capacidade de aproveitar esse período em que fomos atletas e transforma-lo numa mais-valia, agora no papel de treinador. Estou convencido de que se extrapolássemos isto para uma dimensão mais filosófica, a verdade suprema do treinador só poderia ser atingida quando se conseguisse a relação perfeita entre a experiência como treinador e o percurso como atleta.